domingo, 2 de março de 2008

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Especialmente para J. S.
a jovem artista que,
mesmo que involuntariamente e sem querer,
tanto têm me dado,
( prazer, emoções, ensinamentos, etc)
através de seus maravilhosos
e bem inspirados textos
e escritos.


Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 7


Roma, 14 de maio de 1904

Meu caro Sr. Kappus,


Decorreu muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me guarde rancor por isto; trabalho, incômodos e indisposições impediram-me sucessivamente de dar-lhe uma resposta. Queria esta lhe viesse de dias tranqüilos e bons. Agora me sinto outra vez um pouco melhor
( o começo da primavera fez sentir bastante, também aqui, suas transições malignas e caprichosas, ) e venho cumprimenta-lo, caro Sr. Kappus, e ( o que faço com tanto gosto )
dizer-lhe, o melhor que posso, algumas coisas a respeito da sua carta.

Como vê, copiei o seu soneto por achá-lo belo e simples e porque nasceu numa forma em que se move com tão discreta correção. Dos versos seus que tenho lido são estes os melhores. Venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus.


Soneto

Franz Xaver Kappus (tradução de Paulo Rónai)

Treme sem queixa por meu coração,
sem suspiro, uma dor muito sombria.
Só dos sonhos a nívea floração
é a festa de algum mais tranqüilo dia.

Tanta vez a grande interrogação
se me depara! Encolho-me, e com fria
timidez passo, como passaria
por bravo mar, sem aproximação.

Desce, então, sobre mim, turva amargura
como esses céus cinzentos de verão
Onde uma estrela às vezes estremece.

Tateantes, minhas mãos vão à procura
do amor, buscam palavras da oração
Que meu lábio deseja e não conhece.


Soneto

Franz Xaver Kappus (tradução de Pedro Sussekind)

Pela minha vida, sem amargura,
Sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
É a benção de meu mais tranqüilo dia.

Às vezes cruza a trilha que acompanho
A grande questão. Sigo assim, frio,
Pequeno, como à margem de um rio
Do qual não ouso medir o tamanho.

Então me vem um lamento, um torpor
Cinza como, nas noites de verão,
Céus em que raro uma estrela se acende.

Minhas mãos tateiam por amor,
Porque gostaria de fazer uma oração
Mas ela escapa à minha boca quente...


Foi uma alegria para mim reler várias vezes o soneto e a carta, agradeço-lhe ambos.

Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos que nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: tem que aprendê-lo.

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se,
unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos ( “escutar e martelar dia e noite” ). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles ( que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar ); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e freqüente dos jovens: eles – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois?
Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão
e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjôo, desilusão e empobrecimento. Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão se cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata, sem perigos e segura como os prazeres do público.

No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão – e a média fica sempre nisso –, sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se vêem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?

Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre ( como o casamento ), vão dar em outra solução menos clamorosa mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional: todas as relações resultantes de tal confusão encerram a sua convenção por menos usual ( ou, no sentido comum, por menos moral ) que seja. A própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.

Quem examina a questão com seriedade, acha que, como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrada até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós e transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. Na medida, porém, em que começar-mos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverar-mos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e um tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.

Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem.

A moça e a mulher, em sua nova e peculiar evolução, apenas transitoriamente imitarão os hábitos e vícios masculinos, só transitoriamente repetirão as profissões masculinas. Depois de passada a incerteza dessa transição, é que se poderá perceber que as mulheres não adotaram toda aquela multidão de disfarces ( frequentemente ridículos ) senão para limpar sua profunda essência das influências deformadoras do outro sexo. A mulher em quem a vida habita mais direta, fértil e cheia de confiança, deve, na realidade, ter-se tornado mais amadurecida, mais humana do que os homens, criaturas leves a quem o peso de um fruto carnal não fez descer sob
a superfície da vida e que, vaidosos e apressados, subestimam o que pensam amar. Esta humanidade da mulher, levada a termo entre dores e humilhações há de vir à luz, uma vez despidas, nas transformações de sua situação exterior, as convenções de exclusiva feminilidade. Os homens que não a sentem vir ainda, serão por ela surpreendidos e derrotados. Um dia ( desde já predito, sobretudo nos países nórdicos, por sinais fidedignos ) ali estará a moça, ali estará a mulher cujo nome não mais significará apenas uma oposição ao macho nem suscitará a idéia de complemento e de limite, mas sim a de vida, de existência: a mulher-ser-humano.

Esse progresso há de transformar radicalmente ( muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira ) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano ( que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto ) assemelhar-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.

Ainda mais: não pense que o grande amor que lhe fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou a sua vida.

Todos os meus bons votos para si, caro Sr. Kappus.

Seu
Rainer Maria Rilke


Obs.: Incluí também a tradução do soneto de Franz Xaver Kappus, feita por Pedro Sussekind, a título de enriquecimento mesmo, só pra gente perceber como cada autor, de certa forma, interpretou e procurou revelar certas nuances, são dois pontos de vista ligeiramente diferentes, mas ambos sumamente interessantes; a quem interessar possa, a versão de “Cartas a um Jovem Poeta” de Pedro Sussekind se encontra a venda em diversas livrarias por menos de dez reais, é uma pequena edição de bolso da L&PM POCKET, o site é http://www.lpm.com.br/ . Eu tenho a sorte de ter as duas traduções, a de Paulo Rónai, da editora globo, de Porto Alegre (nem sei se ela ainda existe) é a de que gosto mais, ela vem junto também com a tradução de Cecília Meireles da “Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”, canção essa aliás que até hoje me resulta difícil de compreender, apesar de achá-la muito poética e bonita; pois bem, a de Paulo Rónai talvez só dê pra adquirir encontrando em sebos ( foi o meu caso ). De qualquer forma, se vocês já conseguiram chegar até aqui não estão mais órfãos, pois pouco a pouco as 10 cartas estarão aqui para deleite de todos – só espero não estar incorrendo em nenhum crime de direitos autorais – , Paulo Rónai, onde estiveres, muito obrigado!! E me desculpe qualquer coisa, sim? Juro que tive a melhor das boas intenções do mundo ( muito embora a gente saiba que de boas intenções o inferno já se encontra cheio... )

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Essa e todas as que se seguirão são
para todos mas, sobretudo,
especialmente para J. S.
com toda a humildade, carinho,
cuidado e vontade de acertar
de que sou capaz,
na qualidade de intruso e estranho.


Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 4


De passagem por Worpswede, perto de
Bremem, 16 de julho de 1903.

Deixei Paris há uns dez dias, bastante indisposto e cansado, e vim para esta grande planície nórdica cuja vastidão, silêncio e céu hão de curar-me outra vez. Mas entrei logo numa longa chuva, que somente hoje deixou um pouco de claridade sobre o país sacudido de inquietação. Aproveito este primeiro momento de luz para cumprimentá-lo, caro senhor.

Querido Sr. Kappus, deixei uma carta sua sem resposta durante muito tempo. Isto não quer dizer que o tenha esquecido. Pelo contrário. É uma daquelas cartas que a gente relê cada vez que as volta a encontrar entre as outras. Nela o reconheci como se estivesse muito perto de mim. Era sua carta de dois de maio, que provavelmente não terá esquecido. Ao lê-la, como o faço agora, no grande silêncio destes longes, sinto-me comovido por sua bela preocupação com a vida, mais ainda do que me senti em Paris onde tudo ressoa e esmorece de outro modo, devido ao excessivo barulho que faz as coisas estremecerem. Aqui, tendo em redor de mim uma possante região sobre a qual passam ventos vindos dos mares, bem sinto que nenhum homem pode responder às perguntas e aos sentimentos que têm vida própria no âmago de seu ser. Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas têm de significar o que há de mais discreto, de quase indizível. Creio, contudo, que o senhor não deixará de encontrar uma solução, se se agarrar a coisas que se assemelham a si, como as que agora dão repouso aos meus olhos. Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável; se possuir este amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso e, por assim dizer, reconciliador, – não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe. O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta. Quiçá carregue em si a possibilidade de criar e moldar, – como uma maneira de ser particularmente feliz e pura. Eduque-se para isto, mas aceite o que vier com toda a confiança. Se vier só da sua vontade, de qualquer necessidade de seu ser íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um peso difícil de se carregar. Mas é difícil o que nos incumbiram; quase tudo o que é grave é difícil: e tudo é grave. Se chegar a reconhecer isto e a alcançar, – partindo de si, de sua inclinação e de sua maneira de ser, de sua experiência e infância – uma relação inteiramente sua ( livre de convenções e costumes ) com a carne, não mais deverá temer o perder-se e o tornar-se indigno de sua posse mais preciosa.

A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo; a plenitude e o esplendor de todo o saber. O mal não é que nós a aceitemos; o mal consiste em quase todos abusarem dessa experiência, malbaratando-a fazendo dela um mero estímulo para os momentos cansados de sua existência, uma simples distração, em vez de uma concentração para as alturas. Até o comer, os homens transformaram em algo diferente: a carência de um lado, o excesso de outro perturbaram a clareza desta necessidade; e todas as necessidades elementares em que a vida se renova tornaram-se igualmente turvas. O indivíduo, porém, pode esclarecê-las para si mesmo e vivê-las às claras ( não todos os indivíduos, demasiado dependentes, mas pelo menos os solitários ). Estes podem lembrar-se de que toda beleza em animais e plantas é uma forma silenciosa de amor e desejo; e podem ver o animal como a planta, unindo-se, multiplicando-se e crescendo paciente e docilmente, não por gozo físico nem por dor física, mas curvando-se diante de necessidades maiores que a volúpia e a dor e mais poderosas que a vontade e a resistência. Pudesse o homem acolher com maior humildade este segredo de que a terra está cheia até em suas coisas mais ínfimas; carregá-lo e suportá-lo com mais gravidade, sentindo-lhe o peso, – em vez de o tratar com leviandade. Pudesse ter respeito para com a própria fecundidade, que é uma só, embora pareça ora espiritual, ora corporal. A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. “ A idéia de ser criador, de gerar, de moldar” não é nada sem sua grande e perpétua confirmação na vida; nada sem o consenso mil vezes repetido das coisas e dos animais. Seu gozo não é tão indescritivelmente belo e rico senão porque está cheio de reminiscências herdadas da geração e de parte de milhões de seres. Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num baloiçar de volúpia, executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e forças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres. Eles estão evocando o futuro; mesmo que estejam enganados, que se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo; um homem novo se há de erguer. Sobre a base do acaso que parece cumprir-se nesse abraço, acorda a lei que faz com que um germe forte e poderoso avance até o óvulo que vem aberto a seu encontro. Não se deixe enganar pela superfície: – nas profundidades tudo se torna lei. Aqueles que vivem mal este segredo ( é o caso da maioria ), perdem-no apenas para si mesmos, pois transmitem-no a outros como uma carta lacrada sem o saberem. Não se deixe iludir pela multiplicidade dos nomes ou pela complicação dos casos. Talvez paire acima de tudo uma imensa maternidade, um comum desejo. A beleza da virgem, um ser “que – como diz com tanto acerto – ainda não cumpriu nada” é maternidade que se pressente e se prepara, que anseia e deseja. A beleza da mãe é a maternidade que serve; a da anciã uma grande recordação. No próprio homem, parece-me, há maternidade carnal e espiritual; a sua criação também é uma maneira de dar à luz. Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo talvez resida nisto: o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta.

Mas tudo isto que talvez um dia seja possível a muitos, o solitário pode prepará-lo desde já, e construí-lo com suas mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos. Alegre-se com esta imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se-lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que eles não poderão compreender. Procure realizar com eles uma comunhão qualquer, fiel e simples, que não se deverá necessariamente transformar à medida que o senhor mesmo se transforme. Ame neles a vida sob uma forma estrangeira e tenha indulgência com os homens que, envelhecidos, temem a solidão a que o senhor se confia. Evite dar alimento ao drama sempre pendente entre pais e filhos o qual gasta muita força destes e consome o amor daqueles; amor que, embora incompreensivo, age e aquece. Não lhes peça conselho e não conte com sua compreensão, mas acredite num amor que lhe é conservado como uma herança e fique certo de que há nesse amor uma força e uma benção a que não se arrancará mesmo se for para muito longe.

É bom o senhor abraçar antes de tudo uma profissão, que o tornará independente e o entregará exclusivamente a si, em todos os sentidos. Aguarde com paciência, a ver se a vida íntima se sente limitada pela forma dessa profissão; considero-a muito difícil e cheia de exigências, carregada de convenções e quase sem margem para uma interpretação pessoal de seus deveres. Mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os caminhos. Todos os seus desejos estão prontos a acompanhá-lo e minha confiança está consigo.

Seu Rainer Maria Rilke