quarta-feira, 26 de março de 2008

Cartas a um Jovem Poeta – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 1

Paris, 17 de fevereiro de 1903.

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer: a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito esse reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha Alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto as poesias nada tem ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem, – usando da licença que me deu de aconselhá-lo – peço que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se, então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existências cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a sim mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Paro o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: Sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar.Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procura interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceito o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao término de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria eu encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por esse amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 2

Viareggio perto de Pisa (Itália),
5 de abril de 1903.

Perdoe-me, caro e prezado senhor, o lembrar-me só agora, com gratidão, de sua carta de 24 de fevereiro: estive todo este tempo indisposto, embora não doente, mas opresso por uma fraqueza parecida com influenza, e que me tornou incapaz de fazer qualquer coisa. Finalmente, não vendo melhoras, vim para as margens deste mar do sul cuja caridade já ma valeu uma vez . Mas ainda assim o senhor deve tomar estas poucas linhas como se fossem muitas mais.

Deve naturalmente saber que toda carta sua me alegrará. Mostre-se, porém, indulgente com as respostas, que talvez o deixem mais de uma vez com as mãos vazias. Com efeito, em última análise, é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós, e para que um possa aconselhar ou mesmo ajudar a outro, muito deve acontecer; muitos sucessos favoráveis devem ocorrer; toda uma constelação de eventos se deve reunir para que uma única vez se alcance uma resultado feliz.

Quero falar-lhe hoje apenas de duas coisas. Primeiro, da ironia.

Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde ela nunca desce; e ao sentir-se destarte como que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade do seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.

A segunda coisa que lhe queria dizer hoje é a seguinte:

De todos os meus livros, só alguns me são indispensáveis, mas há dois que se encontram entre meus objetos de uso por onde quer que ande. Tenho-os comigo aqui também: a bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Pergunto-me se os conhece. Pode facilmente adquiri-los, sendo que parte deles foi publicada na coleção Reklam em ótima tradução. Adquira o volumezinho Seis novelas de Jens peter Jacobsen e seu romance Niels Lyhne e comece pela primeira novela do primeiro volume, intitulada Mogens. Um mundo se abrirá aos seus olhos: a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de der aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Este amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, passará a fazer parte, estou certo, do tecido de seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias.

Se eu tivesse de confessar com quem aprendi alguma coisa acerca da essência do processo criador, sua profundidade e eternidade, só poderia indicar dois nomes: o de Jacobsen, este poeta máximo, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas de nossos dias.

Que tudo lhe suceda bem sem seus caminhos.

Seu
Rainer Maria Rilke

domingo, 16 de março de 2008

O Palhaço – Deolindo Tavares

O Palhaço

Vestiram-me esta mísera roupa de palhaço,
e pelas estradas, sob todas as noites, sob todas as estrelas
caminho, caminho sempre.
Vejo que as mangas estão bem curtas,
também as calças estão bem curtas,
mas caminho sempre,
sem circo,
sem trapézio,
sem arena,
sem amores caminho sempre.
Antes de minhas exibições,
tenho como espelho o espelho dos grandes lagos
onde se miram os frágeis juncos,
onde repousam os inquietos pirilampos.
Mais tarde,
quando eu arrancar enfim a máscara,
boiará o azul, o branco, o roxo e o negro,
cores do meu desespero, cores de todos os risos.
Sou de uma troupé única no mundo:
vestiram-me uma roupagem que não é minha,
e ela comprime meu coração, meu cérebro e minh'alma;
sou de uma troupé única no mundo,
porque meus comparsas não cobrem jamais o rosto
e têm-no tranquilo até na morte.
De mim, todos riem, sou o palhaço universal,
mas se pudesses por acaso
olhar minha face na hora em que escrevo este poema,
oh, decerto cegarias ante tanta beleza e tanta luz!

quarta-feira, 12 de março de 2008

Novamente ela, a maravilhosa LOu Kaisen ou...

Continuação do que, por motivos de força maior, não pôde ser publicado no dia de ontem;


Noturnos
Pessoas que dizem adeus..........sentimentos não.
Pessoas que calam..........sentimentos não.
Pessoas que prendem...........sentimentos não.
Pessoas indo.......sentimentos vão.
Pessoas mudas..........sentimentos vão.
Pessoas presas.......sentimentos vão.
Pessoas.....sentimentos...
Prisões....não....
Sentimentos...
Pessoas...
Vão
..................................LOu

terça-feira, 11 de março de 2008

Sobre LOu Kaisen ou...

De uma poetiza que, se nascida a tempo, moraria nos manuais, e seria investigação certa de gerações e gerações de literatos, filósofos, vestibulandos, graduandos e artistas; além de nós, meros mortais comuns, é claro.


Quem silencia....não sabe que cria,no outro silêncio?
O meu silêncio é teu silêncio que bate frio
Na porta.Fechada para silêncios.
Quando é o silêncio que se insinua...
É que a palavra ficou sem fala.
Silêncio acalma.Silêncio afasta.Silêncio mata.
Ou diz...tudo o que o outro não quer dizer.
Quem sabe nada há para ser dito?
Silêncio é isso....um mundo de possibilidades.
Silenciosas.

quinta-feira, 6 de março de 2008

No Meio do Caminho – Olavo Bilac

Dando continuidade à idéia primordial do Miscelâneas – reunir textos, poesias e frases dos mais diversos autores e matizes.

No Meio do Caminho

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e a alma povoada de sonhos eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa a minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
nem o pranto os teus olhos umedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac.

quarta-feira, 5 de março de 2008

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 8


Borgeby Gard, Flãdie, Suécia,
12 de agosto de 1904.


Quero outra vez conversar consigo um momento, caro Sr. Kappus, embora quase nada lhe possa dizer de prestimoso, de útil. O senhor teve muitas e grandes tristezas, que passaram, e me diz que até a sua passagem foi difícil e desenganadora. Mas, por favor, reflita: essas grandes tristezas não terão passado, antes, pelo âmago de seu ser? Muita coisa não se terá mudado dentro de si? Algum recanto de seu ser não se terá modificado enquanto estava triste? Perigosas e más são apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua voz. Como as doenças tratadas superficialmente e à toa, elas apenas se escondem e, depois de leve pausa, irrompem muito mais terríveis. Juntam-se no fundo da alma e formam uma vida não vivida, repudiada, perdida, de que se pode até morrer. Se nos fosse possível ver além dos limites de nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos pressentimentos, talvez suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas alegrias. São, com efeito, esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de ignoto: nossos sentimentos emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio e a novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.

Parece-me que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias porque já não ouvimos viver nossos sentimentos que se nos tornaram estranhos; porque estamos a sós com o estrangeiro que nos veio visitar; porque, num relance, todo o sentimento familiar e habitual nos abandonou; porque nos encontramos no meio de uma transição onde não podemos permanecer. Eis por que a tristeza também passa: a novidade em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, penetrou no seu mais íntimo recanto. Nem está mais lá – já passou para o sangue. Não sabemos o que houve. Facilmente nos poderiam fazer crer que nada aconteceu; no entanto, ficamos transformados, como se transforma uma casa em que entra um hóspede. Não podemos dizer quem veio, talvez nunca o venhamos a saber, mas muitos sinais fazem crer que é o futuro que entra em nós dessa maneira para se transformar em nós mesmos muito antes de vir a acontecer. Por isso é tão importante estar só e atento quando se está triste. O momento, aparentemente anódino e imóvel, em que o nosso futuro entra em nós, está muito mais próximo da vida do que aquele outro, sonoro e acidental, em que ele nos sobrevém como se chegasse de fora. Quanto mais estivermos silenciosos, pacientes e entregues à nossa mágoa, tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto melhor a conquistamos, tanto mais ela se tornará nosso destino e quando, num dia ulterior, vier a “acontecer” – isto é, quando sair de nós para se chegar a outros – senti-la-emos familiar e próxima. Deve ser assim. É preciso – e a nossa evolução, aos poucos, há de processar-se nesse sentido, – que nada de estranho nos possa advir, senão o que nos pertence desde há muito. Já se modificaram muitas noções relativas ao movimento; há de se reconhecer, aos poucos, que aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar neles. Muitas pessoas não percebem o que delas saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem o transformaram em si mesmas. Afigurou-se-lhes tão estranho que, em seu confuso espanto, julgavam-no saído delas justamente naquele momento, e juravam nunca antes ter encontrado em si algo parecido. Como os homens durante muito tempo se iludiram acerca do movimento do sol, assim se enganam ainda em relação ao movimento do que está por vir. O futuro está firme, caro Sr. Kappus, nós é que nos movimentamos no infinito.

Como, pois, não seria difícil a nossa sorte?

Falando novamente em solidão, torna-se cada vez mais evidente que ela não é, na realidade, uma coisa que nos seja possível tomar ou deixar. Somos nós. Podemos enganar-nos a este respeito e agir como se não fosse assim; nada mais. Mas quão melhor é admitir que se é só, e mesmo partir daí. Naturalmente, começaremos por sentir tonturas, pois todos os pontos em que costumávamos descansar os olhos nos são retirados, não há mais nada perto e os longes ficam todos infinitamente longe. Aquele que, tirado de seu quarto, sem preparação nem transição, se visse transportado de chofre para o cume de uma alta montanha, deveria sentir algo de semelhante: sentir-se-ia como que aniquilado por uma incerteza sem igual, pela impressão de estar entregue ao inominável. Julgaria estar caindo, arrastado pelos ares ou despedaçado. Seu cérebro deveria inventar alguma mentira enorme para alcançar e esclarecer o estado de seus sentidos. Dessa maneira é que se alteram, para quem se torna solitário, todas as distâncias, todas as medidas. Muitas dessas transformações se verificam repentinamente e, como no homem colocado no cume da montanha, produzem-se então imaginações insólitas e estranhas sensações cujas proporções parecem insuportáveis. Mas é preciso vivermos também isso. Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por terem os homens revelado covardes nesse sentido, foi a vida prejudicada imensamente. As experiências a que se dá o nome de “aparecimentos”, todo o pretenso mundo “sobrenatural”, a morte, todas essas coisas tão próximas de nós têm sido tão excluídas da vida, por uma defensiva cotidiana, que os sentidos com os quais as poderíamos aferrar se atrofiaram. Nem falo em Deus. Mas a ânsia em face do inesclarecível não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações de homem para homem, que por assim dizer foram retiradas do leito de um rio de possibilidades infindas para ficarem num ermo lugar da praia, fora dos acontecimentos. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, frente ao qual não nos sentimos bastante fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança. Entretanto, quão mais humana, aquela perigosa incerteza que faz os prisioneiros dos contos de Poe apalparem as formas de suas terríveis prisões e não desconhecerem os indizíveis horrores de sua moradia. Nós outros, aliás, não somos prisioneiros. Em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Estamos colocados no meio da vida como no elemento que mais nos convém. Também, em conseqüência de uma adaptação milenar, tornamo-nos tão parecidos com ela que, graças a um feliz mimetismo, se permanecermos calados, quase não poderemos ser distinguidos de tudo o que nos rodeia. Não temos motivos de desconfiar de nosso mundo,pois ele não nos é hostil. Havendo nele espantos, são os nossos; abismos, eles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Se conseguirmos organizar a nossa vida segundo o princípio que aconselha agarrarmo-os sempre ao difícil, o que nos parece muito estranho agora há de tornar-se o nosso bem mais familiar, mais fiel. Como esquecer os mitos antigos que se encontram no começo de cada povo: os dos dragões que num momento supremo se transformam em princesas? Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo horror em última análise, na passe de um desamparo que implora o nosso auxílio.

Também não se deve assustar, caro Sr. Kappus, se uma tristeza se levantar na sua frente, tão grande como nunca viu; se uma inquietação lhe passar pelas mãos e por todas as ações como uma luz ou a sombra de uma nuvem. Deve pensar então que algo está acontecendo em si, que a vida não o esqueceu, que o segura em sua mão e não o deixará cair. Por que deseja excluir de sua vida toda e qualquer inquietação, dor e melancolia, quando não sabe como tais circunstâncias trabalham no seu aperfeiçoamento? Para que perseguir-se a si mesmo com a pergunta: de onde pode vir tudo aquilo e para onde vai? Não sabia estar em transição? Desejava algo melhor do que transformar-se? Se algum ato seu for doentio, lembre-se de que a doença é o meio de que o organismo se serve para se libertar de um corpo estranho; é só ajuda-lo a ficar doente, ter toda a sua doença e deixar a esta o seu curso. Em si, caro Sr. Kappus, está acontecendo tanta coisa. Deve ter a paciência de um doente e a confiança de um convalescente, pois talvez seja um e outro. Mais ainda: o senhor é também o médico que se deve vigiar a si mesmo. Em muitas doenças porém, há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. É o que o senhor deve fazer agora, porquanto é seu próprio médico.

Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem. Senão chegará facilmente a encarar com censuras ( morais ) o seu passado, que naturalmente é responsável em parte do que lhe ocorre agora. Mas o que, dos erros, dos desejos e das saudades de sua adolescência, está agindo em si não é o que o senhor lembra e condena. As condições excepcionais de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis e complexas, submetidas a tantas influências e, ao mesmo tempo, tão alheias a todas as conexões reais da vida que ali onde aparece um vício não se lhe deve dar simplesmente esse nome. Em geral, deve-se ter muita precaução com os nomes. Tão frequentemente uma vida naufraga no nome de um crime e não na própria ação, pessoal e sem nome, que talvez tenha sido uma necessidade inelutável dessa vida e tenha sido acolhida facilmente por ela! O consumo de forças se lhe apresenta tão grande apenas porque sobrestima a vitória. O “grandioso”
não foi aquilo que o senhor pensa ter cumprido ( embora seu sentimento tenha razão ) – mas o fato de já ter existido algo que o senhor pôde colocar em lugar daquele engano, algo de real e verdadeiro. Sem isto, o seu triunfo também teria sido apenas uma reação moral, sem significação ampla; como ele, tornou-se uma seção de sua vida. De sua vida, caro Sr. Kappus, na qual penso com tantos bons votos. Lembra-se como esta vida, desde a infância, aspirava aos “grandes”. Vejo-a abandonar agora o grande para chegar aos maiores. Eis por que não cessa de ser difícil, mas tão pouco cessará de crescer.

Se lhe puder dizer alguma coisa mais, é isto: não pense que aquele que o procura consolar leva uma vida descansada no meio das palavras simples e discretas que às vezes fazem bem ao senhor. A vida dele comporta muito sacrifício e muita tristeza e fica-lhes muito atrás. Mas se assim não fosse, ele nunca podia ter encontrado aquelas palavras.

Seu Rainer Maria Rilke

terça-feira, 4 de março de 2008

Viver Não Dói (Carlos Drummond de Andrade)

Especialmente para S.R.Q.T.
meu grandecíssimo
e melhor amigo.

Viver Não Dói (Carlos Drummond de Andrade)

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana,
que gerou em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade.

Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?

A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!

A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o
desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável
O sofrimento é opcional.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Corrigindo um engano

Ontem falei uma bobagem das bens grandes; refiro-me ao fato de ter dito que o "Cartas" da editora Globo provavelmente só seria encontrado em sebos, eu não poderia ter incorrido em tão grande estupidez, pois pesquisando hoje no google deparei-me com o "Cartas" sendo vendido pela livraria cultura por apenas 19,00 reais, numa reedição pela mesma editora que ontem eu tentei extinguir ( risos! ), só não deu pra encontrar no site o nome do tradutor, mas certamente é a versão do Paulo Rónai, logo fica registrado aqui o meu erro e em face disso tô pensando seriamente em abortar esse projeto de republicar aqui o livro porque isso é crime e num tô afim de entrar em cana ( risos! ); até eu vou comprar uma nova versão para mim também...

Então é isso, divulguei na comunidade do Rilke no Orkut, fiz o maior Hrone ( "agarone", quem é de Recife vai se ligar logo na gíria), o maior "agamenon magalhães ( idem ao parêntese acima ), me sentindo o "cara" por poder divulgar o mestre... É isso gente, foi mal pela bola fora, ok!

Cordiais e desculposas saudações a todos, Yan Malaniuk.

domingo, 2 de março de 2008

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Especialmente para J. S.
a jovem artista que,
mesmo que involuntariamente e sem querer,
tanto têm me dado,
( prazer, emoções, ensinamentos, etc)
através de seus maravilhosos
e bem inspirados textos
e escritos.


Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 7


Roma, 14 de maio de 1904

Meu caro Sr. Kappus,


Decorreu muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me guarde rancor por isto; trabalho, incômodos e indisposições impediram-me sucessivamente de dar-lhe uma resposta. Queria esta lhe viesse de dias tranqüilos e bons. Agora me sinto outra vez um pouco melhor
( o começo da primavera fez sentir bastante, também aqui, suas transições malignas e caprichosas, ) e venho cumprimenta-lo, caro Sr. Kappus, e ( o que faço com tanto gosto )
dizer-lhe, o melhor que posso, algumas coisas a respeito da sua carta.

Como vê, copiei o seu soneto por achá-lo belo e simples e porque nasceu numa forma em que se move com tão discreta correção. Dos versos seus que tenho lido são estes os melhores. Venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus.


Soneto

Franz Xaver Kappus (tradução de Paulo Rónai)

Treme sem queixa por meu coração,
sem suspiro, uma dor muito sombria.
Só dos sonhos a nívea floração
é a festa de algum mais tranqüilo dia.

Tanta vez a grande interrogação
se me depara! Encolho-me, e com fria
timidez passo, como passaria
por bravo mar, sem aproximação.

Desce, então, sobre mim, turva amargura
como esses céus cinzentos de verão
Onde uma estrela às vezes estremece.

Tateantes, minhas mãos vão à procura
do amor, buscam palavras da oração
Que meu lábio deseja e não conhece.


Soneto

Franz Xaver Kappus (tradução de Pedro Sussekind)

Pela minha vida, sem amargura,
Sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
É a benção de meu mais tranqüilo dia.

Às vezes cruza a trilha que acompanho
A grande questão. Sigo assim, frio,
Pequeno, como à margem de um rio
Do qual não ouso medir o tamanho.

Então me vem um lamento, um torpor
Cinza como, nas noites de verão,
Céus em que raro uma estrela se acende.

Minhas mãos tateiam por amor,
Porque gostaria de fazer uma oração
Mas ela escapa à minha boca quente...


Foi uma alegria para mim reler várias vezes o soneto e a carta, agradeço-lhe ambos.

Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos que nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.

Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: tem que aprendê-lo.

Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se,
unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos ( “escutar e martelar dia e noite” ). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles ( que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar ); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.

Aí está o erro tão grave e freqüente dos jovens: eles – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois?
Que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão
e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjôo, desilusão e empobrecimento. Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão se cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata, sem perigos e segura como os prazeres do público.

No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão – e a média fica sempre nisso –, sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se vêem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?

Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre ( como o casamento ), vão dar em outra solução menos clamorosa mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional: todas as relações resultantes de tal confusão encerram a sua convenção por menos usual ( ou, no sentido comum, por menos moral ) que seja. A própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.

Quem examina a questão com seriedade, acha que, como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrada até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós e transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. Na medida, porém, em que começar-mos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas se hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverar-mos, apesar de tudo, e aceitarmos esse amor como uma carga e um tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.

Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem.

A moça e a mulher, em sua nova e peculiar evolução, apenas transitoriamente imitarão os hábitos e vícios masculinos, só transitoriamente repetirão as profissões masculinas. Depois de passada a incerteza dessa transição, é que se poderá perceber que as mulheres não adotaram toda aquela multidão de disfarces ( frequentemente ridículos ) senão para limpar sua profunda essência das influências deformadoras do outro sexo. A mulher em quem a vida habita mais direta, fértil e cheia de confiança, deve, na realidade, ter-se tornado mais amadurecida, mais humana do que os homens, criaturas leves a quem o peso de um fruto carnal não fez descer sob
a superfície da vida e que, vaidosos e apressados, subestimam o que pensam amar. Esta humanidade da mulher, levada a termo entre dores e humilhações há de vir à luz, uma vez despidas, nas transformações de sua situação exterior, as convenções de exclusiva feminilidade. Os homens que não a sentem vir ainda, serão por ela surpreendidos e derrotados. Um dia ( desde já predito, sobretudo nos países nórdicos, por sinais fidedignos ) ali estará a moça, ali estará a mulher cujo nome não mais significará apenas uma oposição ao macho nem suscitará a idéia de complemento e de limite, mas sim a de vida, de existência: a mulher-ser-humano.

Esse progresso há de transformar radicalmente ( muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira ) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano ( que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto ) assemelhar-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.

Ainda mais: não pense que o grande amor que lhe fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou a sua vida.

Todos os meus bons votos para si, caro Sr. Kappus.

Seu
Rainer Maria Rilke


Obs.: Incluí também a tradução do soneto de Franz Xaver Kappus, feita por Pedro Sussekind, a título de enriquecimento mesmo, só pra gente perceber como cada autor, de certa forma, interpretou e procurou revelar certas nuances, são dois pontos de vista ligeiramente diferentes, mas ambos sumamente interessantes; a quem interessar possa, a versão de “Cartas a um Jovem Poeta” de Pedro Sussekind se encontra a venda em diversas livrarias por menos de dez reais, é uma pequena edição de bolso da L&PM POCKET, o site é http://www.lpm.com.br/ . Eu tenho a sorte de ter as duas traduções, a de Paulo Rónai, da editora globo, de Porto Alegre (nem sei se ela ainda existe) é a de que gosto mais, ela vem junto também com a tradução de Cecília Meireles da “Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”, canção essa aliás que até hoje me resulta difícil de compreender, apesar de achá-la muito poética e bonita; pois bem, a de Paulo Rónai talvez só dê pra adquirir encontrando em sebos ( foi o meu caso ). De qualquer forma, se vocês já conseguiram chegar até aqui não estão mais órfãos, pois pouco a pouco as 10 cartas estarão aqui para deleite de todos – só espero não estar incorrendo em nenhum crime de direitos autorais – , Paulo Rónai, onde estiveres, muito obrigado!! E me desculpe qualquer coisa, sim? Juro que tive a melhor das boas intenções do mundo ( muito embora a gente saiba que de boas intenções o inferno já se encontra cheio... )

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Essa e todas as que se seguirão são
para todos mas, sobretudo,
especialmente para J. S.
com toda a humildade, carinho,
cuidado e vontade de acertar
de que sou capaz,
na qualidade de intruso e estranho.


Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 4


De passagem por Worpswede, perto de
Bremem, 16 de julho de 1903.

Deixei Paris há uns dez dias, bastante indisposto e cansado, e vim para esta grande planície nórdica cuja vastidão, silêncio e céu hão de curar-me outra vez. Mas entrei logo numa longa chuva, que somente hoje deixou um pouco de claridade sobre o país sacudido de inquietação. Aproveito este primeiro momento de luz para cumprimentá-lo, caro senhor.

Querido Sr. Kappus, deixei uma carta sua sem resposta durante muito tempo. Isto não quer dizer que o tenha esquecido. Pelo contrário. É uma daquelas cartas que a gente relê cada vez que as volta a encontrar entre as outras. Nela o reconheci como se estivesse muito perto de mim. Era sua carta de dois de maio, que provavelmente não terá esquecido. Ao lê-la, como o faço agora, no grande silêncio destes longes, sinto-me comovido por sua bela preocupação com a vida, mais ainda do que me senti em Paris onde tudo ressoa e esmorece de outro modo, devido ao excessivo barulho que faz as coisas estremecerem. Aqui, tendo em redor de mim uma possante região sobre a qual passam ventos vindos dos mares, bem sinto que nenhum homem pode responder às perguntas e aos sentimentos que têm vida própria no âmago de seu ser. Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas têm de significar o que há de mais discreto, de quase indizível. Creio, contudo, que o senhor não deixará de encontrar uma solução, se se agarrar a coisas que se assemelham a si, como as que agora dão repouso aos meus olhos. Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável; se possuir este amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso e, por assim dizer, reconciliador, – não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe. O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta. Quiçá carregue em si a possibilidade de criar e moldar, – como uma maneira de ser particularmente feliz e pura. Eduque-se para isto, mas aceite o que vier com toda a confiança. Se vier só da sua vontade, de qualquer necessidade de seu ser íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um peso difícil de se carregar. Mas é difícil o que nos incumbiram; quase tudo o que é grave é difícil: e tudo é grave. Se chegar a reconhecer isto e a alcançar, – partindo de si, de sua inclinação e de sua maneira de ser, de sua experiência e infância – uma relação inteiramente sua ( livre de convenções e costumes ) com a carne, não mais deverá temer o perder-se e o tornar-se indigno de sua posse mais preciosa.

A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo; a plenitude e o esplendor de todo o saber. O mal não é que nós a aceitemos; o mal consiste em quase todos abusarem dessa experiência, malbaratando-a fazendo dela um mero estímulo para os momentos cansados de sua existência, uma simples distração, em vez de uma concentração para as alturas. Até o comer, os homens transformaram em algo diferente: a carência de um lado, o excesso de outro perturbaram a clareza desta necessidade; e todas as necessidades elementares em que a vida se renova tornaram-se igualmente turvas. O indivíduo, porém, pode esclarecê-las para si mesmo e vivê-las às claras ( não todos os indivíduos, demasiado dependentes, mas pelo menos os solitários ). Estes podem lembrar-se de que toda beleza em animais e plantas é uma forma silenciosa de amor e desejo; e podem ver o animal como a planta, unindo-se, multiplicando-se e crescendo paciente e docilmente, não por gozo físico nem por dor física, mas curvando-se diante de necessidades maiores que a volúpia e a dor e mais poderosas que a vontade e a resistência. Pudesse o homem acolher com maior humildade este segredo de que a terra está cheia até em suas coisas mais ínfimas; carregá-lo e suportá-lo com mais gravidade, sentindo-lhe o peso, – em vez de o tratar com leviandade. Pudesse ter respeito para com a própria fecundidade, que é uma só, embora pareça ora espiritual, ora corporal. A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. “ A idéia de ser criador, de gerar, de moldar” não é nada sem sua grande e perpétua confirmação na vida; nada sem o consenso mil vezes repetido das coisas e dos animais. Seu gozo não é tão indescritivelmente belo e rico senão porque está cheio de reminiscências herdadas da geração e de parte de milhões de seres. Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num baloiçar de volúpia, executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e forças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres. Eles estão evocando o futuro; mesmo que estejam enganados, que se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo; um homem novo se há de erguer. Sobre a base do acaso que parece cumprir-se nesse abraço, acorda a lei que faz com que um germe forte e poderoso avance até o óvulo que vem aberto a seu encontro. Não se deixe enganar pela superfície: – nas profundidades tudo se torna lei. Aqueles que vivem mal este segredo ( é o caso da maioria ), perdem-no apenas para si mesmos, pois transmitem-no a outros como uma carta lacrada sem o saberem. Não se deixe iludir pela multiplicidade dos nomes ou pela complicação dos casos. Talvez paire acima de tudo uma imensa maternidade, um comum desejo. A beleza da virgem, um ser “que – como diz com tanto acerto – ainda não cumpriu nada” é maternidade que se pressente e se prepara, que anseia e deseja. A beleza da mãe é a maternidade que serve; a da anciã uma grande recordação. No próprio homem, parece-me, há maternidade carnal e espiritual; a sua criação também é uma maneira de dar à luz. Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo talvez resida nisto: o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta.

Mas tudo isto que talvez um dia seja possível a muitos, o solitário pode prepará-lo desde já, e construí-lo com suas mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos. Alegre-se com esta imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se-lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que eles não poderão compreender. Procure realizar com eles uma comunhão qualquer, fiel e simples, que não se deverá necessariamente transformar à medida que o senhor mesmo se transforme. Ame neles a vida sob uma forma estrangeira e tenha indulgência com os homens que, envelhecidos, temem a solidão a que o senhor se confia. Evite dar alimento ao drama sempre pendente entre pais e filhos o qual gasta muita força destes e consome o amor daqueles; amor que, embora incompreensivo, age e aquece. Não lhes peça conselho e não conte com sua compreensão, mas acredite num amor que lhe é conservado como uma herança e fique certo de que há nesse amor uma força e uma benção a que não se arrancará mesmo se for para muito longe.

É bom o senhor abraçar antes de tudo uma profissão, que o tornará independente e o entregará exclusivamente a si, em todos os sentidos. Aguarde com paciência, a ver se a vida íntima se sente limitada pela forma dessa profissão; considero-a muito difícil e cheia de exigências, carregada de convenções e quase sem margem para uma interpretação pessoal de seus deveres. Mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os caminhos. Todos os seus desejos estão prontos a acompanhá-lo e minha confiança está consigo.

Seu Rainer Maria Rilke