quarta-feira, 26 de março de 2008

Cartas a um Jovem Poeta – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 1

Paris, 17 de fevereiro de 1903.

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer: a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito esse reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha Alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto as poesias nada tem ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem, – usando da licença que me deu de aconselhá-lo – peço que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se, então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existências cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a sim mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Paro o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: Sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar.Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procura interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceito o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao término de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria eu encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por esse amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 2

Viareggio perto de Pisa (Itália),
5 de abril de 1903.

Perdoe-me, caro e prezado senhor, o lembrar-me só agora, com gratidão, de sua carta de 24 de fevereiro: estive todo este tempo indisposto, embora não doente, mas opresso por uma fraqueza parecida com influenza, e que me tornou incapaz de fazer qualquer coisa. Finalmente, não vendo melhoras, vim para as margens deste mar do sul cuja caridade já ma valeu uma vez . Mas ainda assim o senhor deve tomar estas poucas linhas como se fossem muitas mais.

Deve naturalmente saber que toda carta sua me alegrará. Mostre-se, porém, indulgente com as respostas, que talvez o deixem mais de uma vez com as mãos vazias. Com efeito, em última análise, é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós, e para que um possa aconselhar ou mesmo ajudar a outro, muito deve acontecer; muitos sucessos favoráveis devem ocorrer; toda uma constelação de eventos se deve reunir para que uma única vez se alcance uma resultado feliz.

Quero falar-lhe hoje apenas de duas coisas. Primeiro, da ironia.

Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde ela nunca desce; e ao sentir-se destarte como que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade do seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.

A segunda coisa que lhe queria dizer hoje é a seguinte:

De todos os meus livros, só alguns me são indispensáveis, mas há dois que se encontram entre meus objetos de uso por onde quer que ande. Tenho-os comigo aqui também: a bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Pergunto-me se os conhece. Pode facilmente adquiri-los, sendo que parte deles foi publicada na coleção Reklam em ótima tradução. Adquira o volumezinho Seis novelas de Jens peter Jacobsen e seu romance Niels Lyhne e comece pela primeira novela do primeiro volume, intitulada Mogens. Um mundo se abrirá aos seus olhos: a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de der aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Este amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, passará a fazer parte, estou certo, do tecido de seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias.

Se eu tivesse de confessar com quem aprendi alguma coisa acerca da essência do processo criador, sua profundidade e eternidade, só poderia indicar dois nomes: o de Jacobsen, este poeta máximo, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas de nossos dias.

Que tudo lhe suceda bem sem seus caminhos.

Seu
Rainer Maria Rilke

domingo, 16 de março de 2008

O Palhaço – Deolindo Tavares

O Palhaço

Vestiram-me esta mísera roupa de palhaço,
e pelas estradas, sob todas as noites, sob todas as estrelas
caminho, caminho sempre.
Vejo que as mangas estão bem curtas,
também as calças estão bem curtas,
mas caminho sempre,
sem circo,
sem trapézio,
sem arena,
sem amores caminho sempre.
Antes de minhas exibições,
tenho como espelho o espelho dos grandes lagos
onde se miram os frágeis juncos,
onde repousam os inquietos pirilampos.
Mais tarde,
quando eu arrancar enfim a máscara,
boiará o azul, o branco, o roxo e o negro,
cores do meu desespero, cores de todos os risos.
Sou de uma troupé única no mundo:
vestiram-me uma roupagem que não é minha,
e ela comprime meu coração, meu cérebro e minh'alma;
sou de uma troupé única no mundo,
porque meus comparsas não cobrem jamais o rosto
e têm-no tranquilo até na morte.
De mim, todos riem, sou o palhaço universal,
mas se pudesses por acaso
olhar minha face na hora em que escrevo este poema,
oh, decerto cegarias ante tanta beleza e tanta luz!

quarta-feira, 12 de março de 2008

Novamente ela, a maravilhosa LOu Kaisen ou...

Continuação do que, por motivos de força maior, não pôde ser publicado no dia de ontem;


Noturnos
Pessoas que dizem adeus..........sentimentos não.
Pessoas que calam..........sentimentos não.
Pessoas que prendem...........sentimentos não.
Pessoas indo.......sentimentos vão.
Pessoas mudas..........sentimentos vão.
Pessoas presas.......sentimentos vão.
Pessoas.....sentimentos...
Prisões....não....
Sentimentos...
Pessoas...
Vão
..................................LOu

terça-feira, 11 de março de 2008

Sobre LOu Kaisen ou...

De uma poetiza que, se nascida a tempo, moraria nos manuais, e seria investigação certa de gerações e gerações de literatos, filósofos, vestibulandos, graduandos e artistas; além de nós, meros mortais comuns, é claro.


Quem silencia....não sabe que cria,no outro silêncio?
O meu silêncio é teu silêncio que bate frio
Na porta.Fechada para silêncios.
Quando é o silêncio que se insinua...
É que a palavra ficou sem fala.
Silêncio acalma.Silêncio afasta.Silêncio mata.
Ou diz...tudo o que o outro não quer dizer.
Quem sabe nada há para ser dito?
Silêncio é isso....um mundo de possibilidades.
Silenciosas.

quinta-feira, 6 de março de 2008

No Meio do Caminho – Olavo Bilac

Dando continuidade à idéia primordial do Miscelâneas – reunir textos, poesias e frases dos mais diversos autores e matizes.

No Meio do Caminho

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e a alma povoada de sonhos eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa a minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
nem o pranto os teus olhos umedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac.

quarta-feira, 5 de março de 2008

CARTAS A UM JOVEM POETA – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 8


Borgeby Gard, Flãdie, Suécia,
12 de agosto de 1904.


Quero outra vez conversar consigo um momento, caro Sr. Kappus, embora quase nada lhe possa dizer de prestimoso, de útil. O senhor teve muitas e grandes tristezas, que passaram, e me diz que até a sua passagem foi difícil e desenganadora. Mas, por favor, reflita: essas grandes tristezas não terão passado, antes, pelo âmago de seu ser? Muita coisa não se terá mudado dentro de si? Algum recanto de seu ser não se terá modificado enquanto estava triste? Perigosas e más são apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua voz. Como as doenças tratadas superficialmente e à toa, elas apenas se escondem e, depois de leve pausa, irrompem muito mais terríveis. Juntam-se no fundo da alma e formam uma vida não vivida, repudiada, perdida, de que se pode até morrer. Se nos fosse possível ver além dos limites de nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos pressentimentos, talvez suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas alegrias. São, com efeito, esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de ignoto: nossos sentimentos emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio e a novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.

Parece-me que todas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias porque já não ouvimos viver nossos sentimentos que se nos tornaram estranhos; porque estamos a sós com o estrangeiro que nos veio visitar; porque, num relance, todo o sentimento familiar e habitual nos abandonou; porque nos encontramos no meio de uma transição onde não podemos permanecer. Eis por que a tristeza também passa: a novidade em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, penetrou no seu mais íntimo recanto. Nem está mais lá – já passou para o sangue. Não sabemos o que houve. Facilmente nos poderiam fazer crer que nada aconteceu; no entanto, ficamos transformados, como se transforma uma casa em que entra um hóspede. Não podemos dizer quem veio, talvez nunca o venhamos a saber, mas muitos sinais fazem crer que é o futuro que entra em nós dessa maneira para se transformar em nós mesmos muito antes de vir a acontecer. Por isso é tão importante estar só e atento quando se está triste. O momento, aparentemente anódino e imóvel, em que o nosso futuro entra em nós, está muito mais próximo da vida do que aquele outro, sonoro e acidental, em que ele nos sobrevém como se chegasse de fora. Quanto mais estivermos silenciosos, pacientes e entregues à nossa mágoa, tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto melhor a conquistamos, tanto mais ela se tornará nosso destino e quando, num dia ulterior, vier a “acontecer” – isto é, quando sair de nós para se chegar a outros – senti-la-emos familiar e próxima. Deve ser assim. É preciso – e a nossa evolução, aos poucos, há de processar-se nesse sentido, – que nada de estranho nos possa advir, senão o que nos pertence desde há muito. Já se modificaram muitas noções relativas ao movimento; há de se reconhecer, aos poucos, que aquilo a que chamamos destino sai de dentro dos homens em vez de entrar neles. Muitas pessoas não percebem o que delas saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem o transformaram em si mesmas. Afigurou-se-lhes tão estranho que, em seu confuso espanto, julgavam-no saído delas justamente naquele momento, e juravam nunca antes ter encontrado em si algo parecido. Como os homens durante muito tempo se iludiram acerca do movimento do sol, assim se enganam ainda em relação ao movimento do que está por vir. O futuro está firme, caro Sr. Kappus, nós é que nos movimentamos no infinito.

Como, pois, não seria difícil a nossa sorte?

Falando novamente em solidão, torna-se cada vez mais evidente que ela não é, na realidade, uma coisa que nos seja possível tomar ou deixar. Somos nós. Podemos enganar-nos a este respeito e agir como se não fosse assim; nada mais. Mas quão melhor é admitir que se é só, e mesmo partir daí. Naturalmente, começaremos por sentir tonturas, pois todos os pontos em que costumávamos descansar os olhos nos são retirados, não há mais nada perto e os longes ficam todos infinitamente longe. Aquele que, tirado de seu quarto, sem preparação nem transição, se visse transportado de chofre para o cume de uma alta montanha, deveria sentir algo de semelhante: sentir-se-ia como que aniquilado por uma incerteza sem igual, pela impressão de estar entregue ao inominável. Julgaria estar caindo, arrastado pelos ares ou despedaçado. Seu cérebro deveria inventar alguma mentira enorme para alcançar e esclarecer o estado de seus sentidos. Dessa maneira é que se alteram, para quem se torna solitário, todas as distâncias, todas as medidas. Muitas dessas transformações se verificam repentinamente e, como no homem colocado no cume da montanha, produzem-se então imaginações insólitas e estranhas sensações cujas proporções parecem insuportáveis. Mas é preciso vivermos também isso. Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por terem os homens revelado covardes nesse sentido, foi a vida prejudicada imensamente. As experiências a que se dá o nome de “aparecimentos”, todo o pretenso mundo “sobrenatural”, a morte, todas essas coisas tão próximas de nós têm sido tão excluídas da vida, por uma defensiva cotidiana, que os sentidos com os quais as poderíamos aferrar se atrofiaram. Nem falo em Deus. Mas a ânsia em face do inesclarecível não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações de homem para homem, que por assim dizer foram retiradas do leito de um rio de possibilidades infindas para ficarem num ermo lugar da praia, fora dos acontecimentos. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o medo de algum acontecimento novo, incalculável, frente ao qual não nos sentimos bastante fortes. Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança. Entretanto, quão mais humana, aquela perigosa incerteza que faz os prisioneiros dos contos de Poe apalparem as formas de suas terríveis prisões e não desconhecerem os indizíveis horrores de sua moradia. Nós outros, aliás, não somos prisioneiros. Em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Estamos colocados no meio da vida como no elemento que mais nos convém. Também, em conseqüência de uma adaptação milenar, tornamo-nos tão parecidos com ela que, graças a um feliz mimetismo, se permanecermos calados, quase não poderemos ser distinguidos de tudo o que nos rodeia. Não temos motivos de desconfiar de nosso mundo,pois ele não nos é hostil. Havendo nele espantos, são os nossos; abismos, eles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Se conseguirmos organizar a nossa vida segundo o princípio que aconselha agarrarmo-os sempre ao difícil, o que nos parece muito estranho agora há de tornar-se o nosso bem mais familiar, mais fiel. Como esquecer os mitos antigos que se encontram no começo de cada povo: os dos dragões que num momento supremo se transformam em princesas? Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo horror em última análise, na passe de um desamparo que implora o nosso auxílio.

Também não se deve assustar, caro Sr. Kappus, se uma tristeza se levantar na sua frente, tão grande como nunca viu; se uma inquietação lhe passar pelas mãos e por todas as ações como uma luz ou a sombra de uma nuvem. Deve pensar então que algo está acontecendo em si, que a vida não o esqueceu, que o segura em sua mão e não o deixará cair. Por que deseja excluir de sua vida toda e qualquer inquietação, dor e melancolia, quando não sabe como tais circunstâncias trabalham no seu aperfeiçoamento? Para que perseguir-se a si mesmo com a pergunta: de onde pode vir tudo aquilo e para onde vai? Não sabia estar em transição? Desejava algo melhor do que transformar-se? Se algum ato seu for doentio, lembre-se de que a doença é o meio de que o organismo se serve para se libertar de um corpo estranho; é só ajuda-lo a ficar doente, ter toda a sua doença e deixar a esta o seu curso. Em si, caro Sr. Kappus, está acontecendo tanta coisa. Deve ter a paciência de um doente e a confiança de um convalescente, pois talvez seja um e outro. Mais ainda: o senhor é também o médico que se deve vigiar a si mesmo. Em muitas doenças porém, há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. É o que o senhor deve fazer agora, porquanto é seu próprio médico.

Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem. Senão chegará facilmente a encarar com censuras ( morais ) o seu passado, que naturalmente é responsável em parte do que lhe ocorre agora. Mas o que, dos erros, dos desejos e das saudades de sua adolescência, está agindo em si não é o que o senhor lembra e condena. As condições excepcionais de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis e complexas, submetidas a tantas influências e, ao mesmo tempo, tão alheias a todas as conexões reais da vida que ali onde aparece um vício não se lhe deve dar simplesmente esse nome. Em geral, deve-se ter muita precaução com os nomes. Tão frequentemente uma vida naufraga no nome de um crime e não na própria ação, pessoal e sem nome, que talvez tenha sido uma necessidade inelutável dessa vida e tenha sido acolhida facilmente por ela! O consumo de forças se lhe apresenta tão grande apenas porque sobrestima a vitória. O “grandioso”
não foi aquilo que o senhor pensa ter cumprido ( embora seu sentimento tenha razão ) – mas o fato de já ter existido algo que o senhor pôde colocar em lugar daquele engano, algo de real e verdadeiro. Sem isto, o seu triunfo também teria sido apenas uma reação moral, sem significação ampla; como ele, tornou-se uma seção de sua vida. De sua vida, caro Sr. Kappus, na qual penso com tantos bons votos. Lembra-se como esta vida, desde a infância, aspirava aos “grandes”. Vejo-a abandonar agora o grande para chegar aos maiores. Eis por que não cessa de ser difícil, mas tão pouco cessará de crescer.

Se lhe puder dizer alguma coisa mais, é isto: não pense que aquele que o procura consolar leva uma vida descansada no meio das palavras simples e discretas que às vezes fazem bem ao senhor. A vida dele comporta muito sacrifício e muita tristeza e fica-lhes muito atrás. Mas se assim não fosse, ele nunca podia ter encontrado aquelas palavras.

Seu Rainer Maria Rilke

terça-feira, 4 de março de 2008

Viver Não Dói (Carlos Drummond de Andrade)

Especialmente para S.R.Q.T.
meu grandecíssimo
e melhor amigo.

Viver Não Dói (Carlos Drummond de Andrade)

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana,
que gerou em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade.

Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.

Como aliviar a dor do que não foi vivido?

A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!

A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o
desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.

A dor é inevitável
O sofrimento é opcional.